Eu permaneço, mesmo sabendo que coloco em risco a vontade dessas coisas que faço e me soam tão bem. O ballet, por exemplo, que faço às segundas, quartas e sextas, uma hora depois de tomar café com a minha mãe. Isso me parece um pedaço agradável de uma agenda encantada, de dias felizes, nada demais. A aula de fotografia de Moda das terças e quintas, a costura até altas horas, os almoços com o Cesar e a Jéssica, as aulas esporádicas de piano, o japonês com o Diego, meu emprego que toma boa parte do meu tempo, o costume de escrever até tarde ouvindo músicas que marcam fundo, os mocinhos que aparecem em intervalos de dois ou cinco dias, e me abastecem de pedidos vazios de ficadas ou namoros superficiais, um convite para algum bar chato que serve para me tirar de casa e até mesmo rir de um ou outro ser humano mais parecido com o que eu acho que deveria ser um ser humano. Nada disso me soa banal e aprendi mesmo a chamar de minha vida. Mas sei lá, acho tudo idiota e até mesmo medíocre. O ballet, os almoços, os bares, tudo uma tortura. Ainda assim, mesmo sabendo que depois é cheio de dor que carrego minhas horas, ainda assim eu fiz a unha e comprei uma camisetinha preta em promoção. Ainda que sentir de verdade pareça uma outra vida, às vezes cansa viver dentro das coisas que invento. Com você, mesmo eu inventando tudo também, dá para ter essa sensação de desordem, atropelamento, a vida dizendo e não minha cabeça falastrona. Mesmo sendo ofensivo para minha existência que pessoas como você existam. Mesmo que sua indiferença e preguiça e distância mostrem para minha frescura de sentidos como tudo pode ser amargo e pior, mostre que tudo sempre foi como é, e eu é que, vai ver, sou forte ou abençoado demais para não sucumbir logo no início. Mesmo que sua alegria nunca seja por mim. E que sua alegria por qualquer outro ser humano do planeta toque tão fundo minha alma, que seja impossível tornar minha vida intolerável. Sua existência é um absurdo e isso é a maior verdade que me vem à mente quando penso em você ou estou ao seu lado.
Passamos tardes juntos. Dias juntos. Longe. Perto. É leve e eu fico quieto, coisa que nunca acontece com qualquer outra pessoa. Com os outros sou espuleta, como diz minha mãe, mas perto de você fico muito quieto, até demais. Talvez seja porque eu não tenho mais a euforia louca de ser amado, porque amo tanto, mas tanto, que amo pelos dois. Eu incho de felicidade quando alguém me ama e ao ver em você a calmaria dos vencedores corriqueiros, desisti do resto do mundo. E acaba sendo boa a sensação de tarde ordinária, encontro ordinário. Eu pude habitar o papel de simples colega de trabalho, de pé ao seu lado, uma forma de ouvir sua respiração que amo como se fosse o único sopro saudável do mundo. Eu permaneci e isso foi diferente, triste, insuportável, mas possível. Como os mortos que ficam em qualquer lugar, até mesmo embaixo da terra. Morto não deseja e por isso mesmo permanece. Acho que o seu desejo nunca será igual o meu, já que boa parte desse amor enorme que eu sinto por você vem da minha alegria desmesurada em me sentir amado pelos meus próprios sonhos. Você me acalma tanto, me perturba tanto e é uma loucura tudo isso. Às vezes eu queria me vomitar e explodir e rodopiar em mim até furar o chão como uma broca desgovernada e depois sair derrubando o mundo como o único pião que sabe a verdade e precisa chacoalhar seu entorno para não enlouquecer sozinho. É uma loucura sentir tanto. Mas os dias e as situações me impelem a ficar perto, calmo, quieto, me impele a habitar cada instante do estar me retirando o tempo todo. E isso pode ser viver, mas viver é terrível. E antes, quando eu não sabia viver e me sentia amado por um cara qualquer, era ainda mais terrível. Daí que sobra essa sensação de impotência filha da puta, mil vezes maior, pois em nada dá para ser com você. E tudo bem, até pode não ser você, pode ser que nunca foi e nunca será, mas escuta o absurdo: é que nada disso impede que eu sinta um amor imenso por você. E nada impede que eu tenha certeza de que é você, sim.
Me peguei uma hora, olhando você andar, tão malandro, seu olhar percorrendo tudo tão discretamente, e senti que cada dia que passa mais e mais é uma concha o que você se torna. Dessas que é mentira a pérola e o som do mar, mas eu os vejo, o tempo todo. Você andando desse seu jeito que tira meu ar, com essa sua calça meio caída e o jeito de passar a mão na cabeça. E repete a mesma camiseta dia sim, dia não quando pouco se importa. Eu sei, eu entendi. E as cervejas nesses bares, as galinhagens de moleque que não permitem admiração nenhuma da minha parte. E você é tão errado e cheio de estragos, tão distante mas tão próximo do meu príncipe. E me peguei olhando para tudo isso e amando tanto, tanto, tanto. Como se nada mais no mundo fosse tão bonito ou correto ou mesmo perfeito, porque perfeito é o que não tem mesmo cabimento. O resto nem existe porque vemos ou explicamos.
Nesse mundo sem céu, no espaço infinito dos pequenos momentos, certa vez, você me olhou incógnito e me deu um abraço desajeitado. O abraço que disparou corações em mim como se eu tivesse um em cada terminação nervosa do meu corpo. E me disse, com sua voz tão bonita, a mais bonita que eu já ouvi, que me desejava tudo de melhor. Naquele momento entendi que eu estava tentando subir todos os seus andares. Eu entendi que você era o homem da cobertura de aço e eu uma espécie rara de passarinho que tinha algum tipo de chave que se autodestruiria em poucos segundos. E eu entendi também que agora que tinha chegado ali, só me restava pular, já que ninguém agüenta o alto tão alto muito tempo. A vertigem que é esse amor. Minhas olheiras, meu cansaço, meus cinqüenta e oito quilos. Eu posso morrer porque você tem essa gengiva saliente e o dedão estranho e isso me impossibilita, dia após dia, de viver sem sentir você o tempo todo. Mas quem é mesmo que morre dessas coisas? Não, não podemos, com tanta coisa para fazer. Os bares e almoços, o ballet, a costura, os empregos, as fotos e o piano, escrever, tudo isso que é minha vida antes e depois de você. Tudo isso que daqui a pouco, quando a sensação desgraçada de absurdo e solidão passar, tudo isso volta, se acomoda, a agenda mágica, o gostosinho no peito, aceitar você perto, aceitar o fato de não conseguir te esquecer, mesmo te perdendo um pouco todo dia para a vida. Mas agora, hoje, guarda isso: eu amo demais você. Por que escrevo tudo isso? Porque é a minha vingança contra todas as palavras e sensações que nascem e morrem todos os dias, antes de serem expostas, mostrando pra gente que nada vale de nada. Toma esse texto, o único lugar seguro e eterno pro meu amor e pra gente.
JYLF ♥